Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!
Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafísica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...
Álvaro de Campos
Lembrei-me de ir ver este poema de Álvaro de Campos, porque estou numa de arrumações, literalmente falando - estou mesmo a arrumar o meu quarto – o que me faz também pensar que não é só o meu quarto que estou a “arrumar”. Tendo a comparar esta arrumação como a “minha” arrumação. Um “Arrumar a vida”.
Tenho tanta coisa aqui... Desde livros do básico, a cadernos, até folhas da primária. Guardo tudo, não deito nada fora. Guardo tudo para mim. Não sei porquê, simplesmente não gosto de deitar as coisas fora. O que me leva a ter cadernos e cadernos, dossiers e dossiers, folhas e folhas. Desnecessários. Apenas a ocupar espaço, onde poderiam estar novas coisas. Em vez de folhas já escritas, talvez blocos em branco prontos a serem utilizados. Em vez de cadernos passados, talvez cadernos prontos a serem escritos. E por aí adiante. Não é que eu não queira deitar tudo fora, trazer novas folhas em branco e escrever nas novas folhas em branco... mas não consigo. Começo a reler os livros, os trabalhos, começo a recordar os momentos e simplesmente, por muito que eu queira arrumar, fica tudo no mesmo sítio: “não arrumei nem uma coisa nem outra”. São os livros que trazem a saudade de tempos passados que já não voltam mais... talvez por esses momentos já não poderem voltar mais, quero ficar com aquilo que os representa.
Mas estou a ficar sem espaço no meu armário... Já quase lá não cabe nada. Está na hora de comprar um armário novo, mas não vai passar tudo para lá. Não... Só o que eu quiser. Os momentos ficarão guardados na minha memória (espero) e não no meu armário. Novas coisas virão para o novo armário, folhas em branco, cadernos em branco, dossiers sem folhas. E daqui a uns anos estará tudo novamente escrito, na altura em que eu fizer arrumações e deitar tudo fora...
Mas, apesar de ir “fora”, vai continuar cá, em mim. Todos aqueles momentos passados, todos os "momentos" que estavam dentro do armário, continuarão no armário, apenas noutra compartição... Uma mais racional.
Portanto, vou organizar-me... mas vou “ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que é sempre...”
No final, vou acabar mesmo por não arrumar nada... ("Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!")
É por isto que detesto arrumações.
Sem comentários:
Enviar um comentário